O dia era chuvoso, trabalhei remotamente e tive uma sessão de terapia à distância também. Uma das coisas que minha analista disse foi “você tem que se incluir, não é o outro que vai te incluir” e até agora eu só lembro dessa frase, o resto da sessão ficou como neblina na minha memória.
Depois me veio à cabeça uma frase que minha prima tem tatuada “é necessário olhar com violência para as coisas”. Não sei porque lembrei logo disso, talvez porque tenha pensado muito em desobediência civil ultimamente (um dia explico). Enviei uma mensagem para ela pedindo para que me confirmasse se a frase era essa mesmo, “sim, e o nome do autor é Gonçalo M. Tavares” (por acaso ela também tinha acabado de sair de uma sessão de terapia). Pedi o contexto da tatuagem para saciar minha curiosidade repentina.
“Ele tem uma série de livros curtos e pequenos e é meio poeta, fica nesse lugar assim, e ele fala sobre formas e fendas, e pra mim essa frase é muito sobre aprender a olhar além das coisas que estão dadas – a violência é nesse sentido, porque um olhar revelador é também um olhar violento”.
Continuamos o papo (transcrevi aqui):
- Eu defino o canadense como “civilmente obediente”
- Faz muito sentido
- Na sessão falei muito sobre as dualidades da vida de imigrante
- Falo sobre isso na minha visita guiada… O diplomata na condição de imigrante, mas na real é sobre uma obra da Maria Martins…
(contexto: ela é orientadora educacional no Palácio do Itamaraty em Brasília - Sede do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, foi inaugurado em 1970, com traçados de Lúcio Costa e o projeto de Oscar Niemeyer)
- Minha psicóloga falou que não é o outro que vai me incluir
- É isso né.. pra mim foi algo parecido também, para parar de ouvir tanto os outros a ponto de não ter ideia do que eu quero... Mas sobre a Maria Martins, tem uma obra no Itamaraty, igual no MoMa, Mulher e sua sombra, dá um google ai… Ela foi casada com um embaixador, acabou se juntando aos surrealistas e teve uma relação amorosa com o Duchamp (se tornou modelo da obra Étant donnés, entre outras do artista).
Eu pesquisei sobre ela para comentar com os visitantes e uma coisa que ela sempre traz no seu trabalho é sobre a condição de imigrante – porque tem referências a mitos amazônicos nas peças de uma forma muito assustadora, fala sobre o subconsciente, sobre o papel da mulher... mas traz uma referência de Brasil, como algo que persegue ela, sabe? Porque enquanto ela viveu no exterior era na função de representar o país e de ser a voz que vai dizer o que é o que por aqui (nos trópicos) e quando ela retorna é tratada como se não fosse brasileira. Então, acaba tento uma ideia de representação do Brasil que é muito a partir de clichês e umas coisas meio pré-definidas e estabelecidas, porque é a visão que chegava de fora... ajudou a criar o MAM, o seu segundo casamento nos anos 40 foi aberto… gosto muito de falar sobre ela.
Fico presa na frase “o Brasil a persegue”.
Essa é a escultura exposta no Itamaraty. Mulher e sua Sombra, 1950, Maria Martins
Duas figuras femininas estilizadas, em bronze, sobre base de madeira. Ambas encontram-se em posição frontal e eretas, estando uma mais recuada que a outra. A figura da frente, em dourado, tem a boca aberta, cabeça inclinada as palmas das mãos voltadas para cima, tal como se estivesse suplicando, tal como um grito. A figura de trás, em cor escura, também está com a boca aberta e as mãos viradas para cima, de seu ventre se projeta dez protuberâncias que lembram seios. Duas serpentes, saindo de sua cabeça, enroscam-se pelo corpo, tentando alcançar a figura da frente, assim como seus membros inferiores. A sombra tentando alcançar aquele que a projeta, tentando controlá-la. Em Maria Martins, a evocação de uma natureza não dominada pela técnica une-se a elementos do inconsciente para criar imagens de forte impacto visual, o que condiz com a ligação da artista ao movimento surrealista. O Surrealismo pode ser entendido como a superação de uma realidade mutiladora que dilacera o homem de si mesmo e que o leva a perder a unidade do ser. O arquétipo da sombra, conceito desenvolvido pelo psiquiatra Carl Jung, diz respeito aos sentimentos mais primitivos e os instintos mais reprimidos, e pode ser um dos possíveis caminhos para um diálogo com a obra, no sentido da bidimensionalidade do ser e do sentir.
A escultura de bronze me impactou como um soco, pensei “sou eu”.
Comentei (reclamei na verdade) que cansa ser resiliente o tempo todo.
Minha prima continua “Mas é isso né, as pessoas não possuem as mesmas referências que você... você tem que basicamente inventar uma nova persona com novas alusões todos os dias, porque tem uma parte que nunca vai conseguir compartilhar e ao mesmo tempo quando se volta/retorna sente falta da pessoa inventada” – sente-falta-da-pessoa-inventada.
Digo que às vezes esse antes parece que nem existiu, sou um fantasma do passado, sou duas ou mais, mulher e sombra.
Ela continua (porque estava inspiradíssima) “Saudade é sempre também sobre uma ausência de quem você era... uma parte que a gente se obriga a deixar pra trás... um contexto impossível de acontecer de novo, então seguir em frente é o que tem pra hoje, né”
“Só existe essa opção, qual seria a outra?”, digo finalmente.
Mais:
O Impossível (1945), escultura em bronze de Maria Martins
Minha sobrinha no Jardim Aquático, de Burle Marx, tentando se esconder atrás da escultura Folhagem, de Zélia Salgado (da visita que fizemos ao Itamaraty em 2022)
Foto que tirei em um dia chuvoso durante visita guiada ao Palácio e no cantinho direito a escultura O canto da noite, de Maria Martins
Obrigada por chegar até aqui!
Toda semana um textinho novo surge na sua caixa de entrada (o dia pode variar, por motivos de autora instável).
Que tal dividir esse conteúdo com os seus?
Adorei te ler! ♥️
Somos uma e muitas. E diferentes. E para além disso, vamos mudando, adaptando. Dentro de mim está uma neta, uma filha, três mães, três irmãs, quatro tias, uma tia-avó, inúmeras amigas.. Enquanto imigrante que sou, sou todas as descritas só que em mundos e tempos diferentes. A única coisa que é contínua em nós é a necessidade. Precisamos pertencer, amar, ser amadas .. e é essa necessidade que nos faz adaptar (enquanto imigrantes) para continuar pertencendo, amando … é o que chamas de resiliência, Branca. Ela não pode faltar! Continua!