É curioso começar a escrever com uma história em mente e ver as palavras serpentearem e se transformarem em outra coisa. A escrita é esforço e mistério. Técnica e alma. O escritor deve uma coisa ao leitor: originalidade.
Li recentemente um texto muito correto, cheio de detalhes, cenas descritas minuciosamente, editado com meticulosidade, e algo faltou. Por outro lado, um livro de poemas curtos de uma autora insone me cativou profundamente. Não sei se já comentei aqui da minha teoria de que são os livros que escolhem a gente. Tem livro (ou texto avulso mesmo) que clica, faz sentido na hora, a gente se identifica, o mergulho é fácil. Se eu não consigo imergir na história até a metade, eu prefiro retornar depois quando for a hora certa (a hora certa sempre chega).
Li a biografia da Britney Spears, The Woman in me, e a escrita no começo me repeliu. O ghostwriter parece que passou a limpo as entrevistas da cantora, é como se ela estivesse falando com o leitor. No meio do livro eu já estava entendendo melhor aquela fala, o que ela queria contar ali, senti muita pena, como sempre sinto ao ver mulheres exploradas por não conseguirem ter o controle da própria vida, a maré vai levando. Acabaram tirando tudo dela, até a sanidade. E quando digo que gostei do livro a cara que recebo é de espanto. Gostei, porque foi a minha hora de ler aquilo. Posso indicar para outra pessoa e ela ter outra visão de tudo. O sentimento de uma leitura é intransferível. Daí uma amiga ficou se questionando (sem ter lido o livro) porque contar a história de um aborto só agora, tantos anos depois? “A vida do fulano deve estar de pernas para o ar”, o fulano não tem nada a ver com essa história, o que aconteceu faz parte da vida dela e não existe necessidade em silenciar mais. Como é que ela poderia ter contado se na época era vendida como garota virgem para o consumidor? Chega a hora de escrever, assim como chega a hora de ler.
Tenho lido a conta-gotas o livro da Noemi Jaffe, Escrita e movimento - os sete princípios do fazer literário e quase me falta caneta pra grifar tudo o que considero essencial. São ensinamentos que gostaria de nunca esquecer, não para tornar minha escrita mais produtiva, rápida ou digna de prêmios internacionais, mas para torná-la cada vez mais minha. Longe de ser um manual, Noemi fala de conceitos que desenvolveu em sua carreira como escritora e professora de escrita criativa.
Ao longo desses anos trabalhando em oficinas de escrita, fui me dando conta de que escrever ficção não tem regras: é possível cometer “erros” gramaticais, usar quantas vozes narrativas o autor quiser, misturar tempos verbais, criar personagens contraditórios, escrever histórias sem trama definida, sem clímax, sem tempo nem espaços definidos. Tudo é possível, desde que o autor saiba por que o está fazendo e banque as consequências. Quando o “contrato” é claro e o leitor, intuitiva ou racionalmente, entende a proposta narrativa, não há limites para o que a literatura pode fazer.
Se for honesta, faz tempo que não consigo escrever com facilidade. As vozes da minha cabeça tem tomado um espaço absurdo, muitas vezes me paralisando. O que vou escrever hoje? O que tenho pra colocar na folha em branco, se quando a encaro, ela me encara de volta? Tenho coisas irrelevantes e abstratas para contar, tenho notícias para comentar, são linhas que saem com esforço. Sinto vontade de escrever e a perco várias vezes ao longo de um dia. Escrita tem que ter rotina (dizem), eu tenho as minhas morning pages, que escrevo a punho pela manhã. Esse texto poderia fazer parte de mais uma já que comecei assim que acordei. Mas hoje abri o Substack pelo celular e comecei a digitar espontaneamente.
Se for honesta, não fui cativada pelo primeiro livro que li da Annie Ernaux, os Anos. Quem era aquele sujeito indeterminado e coletivo ao mesmo tempo? E mais, que gênero literário era aquele? Quem é essa mulher que fala de si e da história da França como se fosse uma coisa única? Eu era limitada e sabia.
Depois li outro livro e outro e depois outro, e fui sendo arrebatada aos poucos pela concisão e precisão da autora. O último que li Paixão Simples, me conquistou nas primeiras linhas quando a autora compara assistir a uma cena de sexo com escrever.
Trecho da sinopse do livro disponível no site da editora fósforo:
Nas breves páginas deste relato profundamente humano, publicado pela primeira vez em 1992, a vencedora do prêmio Nobel de 2022 esmiúça o estado de enamoramento absoluto que experimentou quando, já divorciada e mãe de dois filhos crescidos, viveu um relacionamento com um homem casado.
Durante os meses em que se relacionou com A., toda a existência da autora foi regida por um novo signo, que ela disseca com precisão e franqueza. “Graças a ele”, afirma, “eu me aproximei do limite que me separa do outro, a ponto de às vezes imaginar que iria chegar do outro lado”. Essa proximidade do limiar, tão própria do sujeito apaixonado, assume formas variadas no relato. A primeira fronteira a ser deixada para trás é a da razão, que cede espaço ao pensamento mágico por meio do qual se manifesta a expectativa agonizante de ser correspondida. Cada evento, palavra ou pessoa ao redor só tem interesse para Ernaux na medida em que a faz pensar em A. Cada minuto longe dele é uma espera que transcorre de forma diversa do ritmo da vida real.
Tema recorrente na obra da escritora, o tempo em Paixão simples não obedece à lógica ou à História. “Para mim não havia essa cronologia em nossa relação, eu só conhecia a presença ou a ausência”, eis o aspecto radical da paixão. Uma vez terminada a relação, o tempo entra em cena novamente, desta vez como índice do rastro deixado por um acontecimento marcante: “Estava sempre calculando, ‘há duas semanas, cinco semanas, ele foi embora’, e ‘no ano passado, nessa data, eu estava aqui, fazendo isso e aquilo’” […]. Pensava que era muito estreito o limiar entre essa reconstituição e uma alucinação, entre a memória e a loucura”.
Me encanta como ao relatar essa paixão avassaladora, e a incompletude humana, ela conta sobre a própria escrita, a escolha em mudar o tempo verbal, ou porque misturou passado e presente, ela tira o coelho da cartola e ainda conta como fez.
Destaco esse trecho, para tecer um comentário depois:
Eu sou a única mulher a retornar a cena de um aborto? Às vezes eu me pergunto se o propósito da minha escrita é descobrir se outras pessoas fizeram ou sentiram as mesmas coisas ou, se não, para elas considerarem experienciar tais coisas como normais. Talvez eu também queira que elas vivam essas mesmas emoções internamente esquecendo que ela já leram sobre em algum lugar
Quem diria que Annie Ernaux e Britney Spears teriam algo em comum? Creio que ser mulher seja o fio condutor das duas experiências.
E para fechar só mais um trecho do livro de Annie Ernaux:
“Eu sei muito bem que não devo esperar nada da escrita, que diferentemente da vida real exclui o inesperado. Continuar escrevendo também é uma forma de continuar atrasando o trauma de dar o texto para que os outros leiam.
Eu não considerei essa eventualidade enquanto sentia a necessidade em escrever, mas agora que eu satisfiz essa necessidade eu encaro as páginas escritas com grande surpresa e algo que lembra vergonha, sentimentos que nunca senti quando estava vivendo a minha paixão e escrevendo sobre.
O prospecto da publicação me leva para perto do julgamento das pessoas e os valores normais da sociedade, tendo que responder questões como: é uma autobiografia? E ter que justificar isso ou aquilo deve ter impedido muitos livros de terem visto a luz do dia, exceto no formato de romance que tem sucesso em salvar as aparências.
A esse ponto, sentada em frente das páginas, coberta de garranchos que só eu consigo entender, eu ainda acredito que isso é algo privado, quase infantil, sem consequência alguma como a declaração de um amor e as expressões obscenas que eu escrevia na parte de trás dos meu caderno do colégio, ou tudo que alguém escreve calmamente na impunidade quando não se tem risco de ser lido. Uma vez que começo a digitar o texto, uma vez que aparece na minha frente e se tornam personagens públicas eu terei terminado com a inocência”.
(tradução livre do inglês - foi a versão que li)
Links e links:
National Book Award - chorei com a vitória do cearense Stenio Gardel e da tradutora do livro A palavra que resta/The words that remain, Bruna Dantas Lobato.
Snowstorm - texto da Bruna Dantas Lobato na New Yorker
Exaltando minha amiga escritora e seu novo livro - Pandora não dormia
Maravilhoso, Branca! E sim, há um momento ótimo para tudo na vida, inclusive ler aquele livro ou escrever sobre aquele assunto. E o fio condutor, para além do significado que deste aqui, também pode ser visto como o fio que liga esses dois momentos entre o do autor e quem o lê. Quando nos toca, o fio está lá, ligado nos dois polos. Quando não há esta ligação, é porque o fio ainda está solto, à procura do sua mesma frequência energética :) beijo grande!
Chega a hora de ler é fundamental para apaixonar-se pelo q se lê.