Como imigrante eu sinto o pertencimento escorrendo pelas minhas mãos diversas vezes ao dia, quando me foge uma palavra em inglês, quando construo uma frase incorretamente e que só faz sentido em português, quando as minhas referências geracionais são completamente alien ao outro (Faustão who?).
Esses dias tentei traduzir para uma amiga “se nem Jesus Cristo agradou todo mundo, quem sou eu?”. Ficou: “If not even Jesus Christ pleased everyone, who am I?”. Ela riu, parou, pensou e disse espantada “makes perfect sense”, foi a primeira vez na vida que ela ouviu a expressão tão popular no Brasil. Amiga essa que vive falando umas coisas meio esquisitas, que o presidente ditador e martial law não são tão ruins assim, que ajuda financeira do governo é algo vergonhoso, que pessoas de uma certa raça não ficam chapadas com facilidade... Eu fico naquela dúvida, será que eu entendi direito? Será que algo se perdeu na tradução? De qualquer maneira, sempre reajo, seja com uma pergunta “mas de onde você tirou isso, mulher”?, ou um pedido “para de ser racista”, na esperança de que o outro se escute, escute o absurdo.
Outra vez tentei explicar para uma colega de trabalho o problema estrutural-social-econômico no Brasil (olha audácia da pessoa, um troço complicadíssimo e eu bem diplomática fazendo discurso como se estivesse no palco da ONU) – porque a distribuição de renda desigual, falta de ensino/educação para todes, má administração dos recursos públicos, ausência de serviços básicos levava pessoas a cometerem crimes ou se filiar a facções (caso, encarceradas) para sobreviver, para ter o mínimo. No final do meu monólogo ela perguntou “mas vem cá, lá no Brasil tu e teu marido tavam cometendo crimes e assaltos também?”. É uma realidade tão distante para certas pessoas, que elas nem conseguem assimilar. Eu gostaria de voltar no tempo só para responder “Sim, inclusive, passa tudo agora”.
Tenho uma amiga canadense - que tem pai brasileiro e mãe gringa - mas não sabe falar nem “oi, tudo bem” em português. Ela me contou que o pai se mudou para cá, Toronto, quando tinha dezesseis anos. Ele veio com os pais, avós, todo mundo e fala inglês perfeitamente, mas quando se encontra com outros brasileiros começa a se expressar propositalmente em broken english, em inglês quebrado, imperfeito, incorreto. É um termo pejorativo – significa que o inglês não é a primeira língua daquela pessoa e ela provavelmente tem um vocabulário mais limitado (e para os falantes nativos deve ser uma característica engraçada). Achei curioso esse recurso/método que ele usa para pertencer. Precisa de prática para o pertencimento, de paciência, de dispositivos secretos até e cada um faz como dá.
Quando escrevo, publico aqui, depois releio e encontro algum erro ortográfico ou gramatical eu fico possessa, porque quero ter controle sobre a palavra cem por cento do tempo, mas jogar para o mundo vem com riscos também, faz parte. Eu admiro demais a escrita de Carolina Maria de Jesus por ela ter feito isso: pegou a palavra e tornou dela, dominou, agarrou pelos chifres, em uma sociedade que implorava para que ela se calasse. Ela abriu meus olhos para a potência de contar histórias e só reafirmou o que eu já sabia: a palavra é de todes.
Lost in Translation
O último episódio do podcast Rádio Novelo, me inspirou a escrever o texto acima, e traz uma entrevista antiga, muita engraçada de Julio Villanueva Chang - escritor e jornalista peruano - com o arquiteto Oscar Niemeyer (com então 102 anos e ativão).
Julio caça boas histórias e personagens excepcionais pelas Américas há anos.
Em 2007, na época do centenário do Niemeyer, Chang tentou entrevistá-lo e não conseguiu.
Em 2010, ele estava no Brasil de novo e recebeu um chamado: se você quiser entrevistar o Niemeyer, materialize-se no escritório dele daqui a uma hora. Chang obedeceu e fez a entrevista de supetão, mas o entrevistador não falava português e Niemeyer não entendia espanhol e muito menos falava portunhol (o papo saiu dos trilhos e ficou hilário). Exemplo: “o que esperar de sus hijos?", resposta: "Pelé”(?????). Niemeyer acaba assumindo: “eu gosto quando vem jornalista aqui, de levar ele para outro assunto", pois conseguiu.
Mais palavras
Chimamanda Ngozi Adichie
Nesse artigo da revista Quatro Cinco Um a escritora nigeriana fala sobre liberdade de expressão e os riscos da censura para a literatura. "A literatura tem uma importância profunda e eu acredito que a literatura esteja em perigo por causa dessa censura social. Se nada mudar, a próxima geração vai nos ler e se perguntar: como eles conseguiram parar de ser humanos? Como podiam ser tão desprovidos de contradição e complexidade? Como baniram todas as suas sombras?"
Não podemos contar histórias que são apenas luz quando a vida em si é luz e escuridão. A literatura trata do fato de sermos sublimes e falhos. Ela trata daquilo que H. G. Wells chamou de “a alegre rudeza da vida”. A isso eu acrescentaria que basta a rudeza, ela não precisa ser alegre. Embora eu insista que a violência nunca é uma reação aceitável ao discurso, não nego que palavras têm o poder de ferir. Palavras podem destruir a coragem humana. Algumas das dores mais profundas que já senti na vida vieram de palavras que alguém disse ou escreveu, e algumas das mais belas dádivas que já recebi também foram palavras. É exatamente por causa do poder das palavras que a liberdade de expressão importa.
Um poema que escrevi para o Tear de Histórias:
Queria escrever um poema sem palavras
Sem vogais e sem consoantes
Sem tema e sem remos
É preciso de dois para navegar
E eu não quero nem meio
Só boiar
Deixar a corrente levar
O rio puxar
O mar se revoltar
Afogar
Quero escrever com meu corpo
Tirando a blusa
O sutiã
A saia e a calcinha
Me despindo enquanto um artista desconhecido me pinta em acrílico
Escrever só com o cheiro de um perfume fora de estoque
Esquecido na prateleira
Descontinuado
Dançar sem ritmo
Sendo ridícula
Não deve ser tão doloroso assim
Já nem sinto mais nada
Enquanto me movimento sem letras
Ao som dos violinos que não entendo
Prefiro um reggeaton
Uma batida sinistra que espante os conservadores pra bem longe de mim
Que me faça forever young
E quem passar e olhar cochiche baixinho
“Acho que ela está louca”
Espero que tenha gostado da news!
Toda semana um textinho novo surge na sua caixa de e-mail (o dia pode variar, por motivos de autora instável).
Que tal dividir esse conteúdo bacana com os seus?
Beijos e até a próxima!
Pertencimento é uma coisa bem maluca. O que faz eu pertencer ? O que falta para eu pertencer? Listas e definições vão também escorrendo pelas mãos todos os dias nessa (minha) vida de imigrante. Já não sei mais se pertenço ou se sou pertencida ou nem mesmo nada disso. Por agora, tenho a sensação que vai além das palavras. Adorei o texto ! Beijo daqui 😘
A News de hoje tá especial